227

Eu me lembro do meu último dia nesta mesma casa para onde voltei. 9 de julho de 2021. Parecia que eu estava só brincando que ia me mudar. As coisas que se acumulavam, que eu comprava para minha casa, não pareciam de verdade. Não parecia que eu ia usá-las. Elas estavam no sofá da sala. Tapetes de banheiro, utilidades domésticas em geral, nem me lembro mais. 

Eu ia me mudar para Ribeirão Preto no início de 2020, mas isso não deu certo por causa da pandemia e eu já tinha coisas suficientes para montar uma casa. Para comprar o restante delas foi dois palitos, mas ainda assim parecia mentira. Aquele dia não ia chegar. Ia ser impossível transformar a 227 num lar. Aquela república, que os meninos não gostavam de chamar assim, mas era o que era: uma república, numa ótima casa, bastante maltratada pelos moradores. Quando escolhi, chorando, as cores da casa: mentira. Quando o pintor transformou aquelas paredes beges no verde escolhido: mentira.  

E eu realmente tomei uma sopa de mandioca, no frio, com meu irmão e minha mãe, no dia 9 de julho de 2021, como se não fosse o último dia em três anos que eu estaria junto deles da forma que nos lembrávamos. 

No dia seguinte, eu me mudei sem ninguém para ver. Minha mãe estava dormindo. Nem sei onde meu irmão estava. Mas lá estávamos eu, André e o carreto para levar todos os móveis e coisas que tinha comprado. André brincava com cada coisa nova que tínhamos. Tapetes macios para pisar. Uma geladeira novinha para encher de comida. Eu me alegrava, apesar de estar muito preocupada com deixar tudo no lugar. 

No dia seguinte à mudança, fui buscar minhas roupas e, no caminho, senti uma ansiedade muito grande, uma dor muito forte no peito. Almoçamos e, depois, ouvindo Dirty Paws, começaram a rolar lágrimas nos meus olhos, muitas, muitas, sem motivo algum. Eu estava morrendo de medo. Não estava preparada para outro modo de vida. Não estava preparada que isso acontecesse sem nenhuma trombeta do juízo final. Como assim eu havia conseguido sair de lá? Daquele inferno? Como? André me abraçou e cuidou de mim. Depois, deitei no sofá, com muito, muito frio que estava naquele dia. 

À medida que ia desempacotando as coisas, me livrando das tralhas da 227, exorcizando a república e seu ar de bagunça, não é que eu ia transformando uma casa e chamando-a de minha? Em questão de semanas, eu estava completamente à vontade e experimentei alguns dos meses mais felizes da minha vida, com tranquilidade.

Eu dormia num quarto sem cortinas e sem venezianas e todos os dias me pegava contemplando a lua. Dormia no escuro completo, apenas com a luz da lua me abraçando. André sempre na sala, porque saía da Cactus e ainda estava agitado, e eu a olhava, minha irmã, e não podia acreditar que sempre poderia olhá-la daquele modo na minha casa. Aquele local onde o sol brilhava, onde a lua brilhava, onde eu tinha um quintal para contemplá-los sempre que quisesse, sem nenhuma escuridão como acontecia no fundo da casa da minha família, em virtude da sorveteria e do modo como tudo foi construído. 

Também me maravilhava com o verde da sala, meu tapete imenso e lindo, o poder assistir e ouvir músicas quando bem entendesse, coisas tão banais, mas tão especiais para mim e que nunca havia experimentado até então. Mesmo ir ao mercado era bom. Porque eu e André nos divertíamos muito comprando coisas, pensando no que comer. 

Também tive meus momentos de ansiedade: como lidar com um quintal tão grande? Quantas vezes por semana era aceitável deixar um quintal sujo? Como deveria lavá-lo? Ele era tão grande, grama, poeira. Pensava não dar conta. Mas dei. 

Naquela casa, poxa, fui muito feliz! Era minha bolha em Matão. Se eu não saísse de vez em quando, eu juraria que nem morava na cidade, porque, naquele lugar, eu era eu e o André era o André, e nós éramos tão diferentes de tudo que nos circundava. 

Lá eu me reconheci eu mesma. Sem as vozes que pairavam sobre mim. Lá me fortaleci. Vivi serena com o André. Quase nunca discutíamos e até hoje é um orgulho para mim ter tido um relacionamento em que nunca levantamos a voz ou ofendemos um ao outro. Éramos e somos amigos. 

Mas as coisas tomam rumos inesperados. 

Empresa. Depressão. Trabalho. Depressão. Dinheiro. Depressão. 

Vivi lindos anos na 227 e sinto muita falta daquele lugar. Muita. O caminho até o Parque dos Ipês. O silêncio de lá. O mercadinho, onde sempre encontrava coisas gostosas para comer. A comida que o André fazia, que sempre era a melhor que eu tinha comido e sempre será a melhor que já comi, mesmo que eu coma em restaurantes caros e Michelin e o escambau. 

Mas também me lembro de lá com certo pesar. As tardes melancólicas. O escuro da cozinha em contraposição à sauna do meu escritório. A minha luta contra as ervas daninhas. Estar deprimida e ir ao fundo de casa, sempre ao fim de tarde, para ouvir "Lanterna dos afogados", "Send me on my way", "Take me home, country roads". Depois de algum tempo, eu não me sentia pertencente ainda assim. Não me sinto pertencente a lugar algum, na verdade. 

Não me senti em Ribeirão, porque a casa verde e rosa era uma extensão minha, mas estava localizada lá, uma cidade horrorosa. Elitista. Nojenta. Tampouco me sinto em casa neste lugar, por inúmeros motivos que sou incapaz de elencar em tão curto texto.  

Mas ainda assim, é estranho. Três anos longe e parece que eu nunca saí daqui. Ao mesmo tempo, tudo é extremamente diferente e eu sou extremamente diferente. E, ainda, muito diferente do que eu era de um ano pra cá. Mudei pra caramba em um ano. Demais. Sou outra, outra mesmo! 

Quando saí de casa, naquele 9 de julho, eu deixei um pouco a minha família para trás. Apesar de sempre termos nos falado todo esse tempo, eu sentia que minha conexão com eles quase não existia mais. Isso voltou e não quero que se perca. Não sei como não se perde. Não se perde? Não sei. É uma dor que carrego. Porque parece que foram três anos de completa ausência do meu modo de vida anterior, mesmo que eu não gostasse dele. Mas fazia parte de mim. Faz.

Sendo assim, nem sei que rumo este texto tomou. É uma cartinha de amor à 227. A casa onde plantei amoras e acerolas para outros colherem. Lavandas. E onde nunca vi o ipê branco florescer completamente. Eu lhe amava muito, casinha. Obrigada. Que seus atuais hóspedes lhe amem tanto ou mais do que lhe amei, mas acho isso impossível. 

Também é um pedido de desculpas para... mim? Pelo meu distanciamento? Por ter me perdido de quem eu era? Mas foi o que foi. Só que você não deve se distanciar das suas raízes, ainda que elas lhe doam, Fernanda. Não mais. Este teto aqui lhe abençoa e, sua família, você não conseguirá consertá-la. Não há conserto. Mas há como carnavalizá-la um tiquinho. Cê conseguiu algumas vezes. Ainda que o retrogosto exista, e existirá, teremos sorvete. Enfim.  

Agora não sei para onde irei. Mas canto mentalmente para que Deus me leve depressa para o meu caminho. E que eu seja feliz como a Matilda no final do filme, com essa trilha sonora tão... tão... poxa, otimista. 

Obrigada. Nem sei a quem agradeço ou ao quê. Mas obrigada. 

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