227
Eu dormia num quarto sem cortinas e sem venezianas e todos os dias me pegava contemplando a lua. Dormia no escuro completo, apenas com a luz da lua me abraçando. André sempre na sala, porque saía da Cactus e ainda estava agitado, e eu a olhava, minha irmã, e não podia acreditar que sempre poderia olhá-la daquele modo na minha casa. Aquele local onde o sol brilhava, onde a lua brilhava, onde eu tinha um quintal para contemplá-los sempre que quisesse, sem nenhuma escuridão como acontecia no fundo da casa da minha família, em virtude da sorveteria e do modo como tudo foi construído.
Lá eu me reconheci eu mesma. Sem as vozes que pairavam sobre mim. Lá me fortaleci. Vivi serena com o André. Quase nunca discutíamos e até hoje é um orgulho para mim ter tido um relacionamento em que nunca levantamos a voz ou ofendemos um ao outro. Éramos e somos amigos.
Mas as coisas tomam rumos inesperados.
Empresa. Depressão. Trabalho. Depressão. Dinheiro. Depressão.
Vivi lindos anos na 227 e sinto muita falta daquele lugar. Muita. O caminho até o Parque dos Ipês. O silêncio de lá. O mercadinho, onde sempre encontrava coisas gostosas para comer. A comida que o André fazia, que sempre era a melhor que eu tinha comido e sempre será a melhor que já comi, mesmo que eu coma em restaurantes caros e Michelin e o escambau.
Mas também me lembro de lá com certo pesar. As tardes melancólicas. O escuro da cozinha em contraposição à sauna do meu escritório. A minha luta contra as ervas daninhas. Estar deprimida e ir ao fundo de casa, sempre ao fim de tarde, para ouvir "Lanterna dos afogados", "Send me on my way", "Take me home, country roads". Depois de algum tempo, eu não me sentia pertencente ainda assim. Não me sinto pertencente a lugar algum, na verdade.
Não me senti em Ribeirão, porque a casa verde e rosa era uma extensão minha, mas estava localizada lá, uma cidade horrorosa. Elitista. Nojenta. Tampouco me sinto em casa neste lugar, por inúmeros motivos que sou incapaz de elencar em tão curto texto.
Mas ainda assim, é estranho. Três anos longe e parece que eu nunca saí daqui. Ao mesmo tempo, tudo é extremamente diferente e eu sou extremamente diferente. E, ainda, muito diferente do que eu era de um ano pra cá. Mudei pra caramba em um ano. Demais. Sou outra, outra mesmo!
Quando saí de casa, naquele 9 de julho, eu deixei um pouco a minha família para trás. Apesar de sempre termos nos falado todo esse tempo, eu sentia que minha conexão com eles quase não existia mais. Isso voltou e não quero que se perca. Não sei como não se perde. Não se perde? Não sei. É uma dor que carrego. Porque parece que foram três anos de completa ausência do meu modo de vida anterior, mesmo que eu não gostasse dele. Mas fazia parte de mim. Faz.
Sendo assim, nem sei que rumo este texto tomou. É uma cartinha de amor à 227. A casa onde plantei amoras e acerolas para outros colherem. Lavandas. E onde nunca vi o ipê branco florescer completamente. Eu lhe amava muito, casinha. Obrigada. Que seus atuais hóspedes lhe amem tanto ou mais do que lhe amei, mas acho isso impossível.
Também é um pedido de desculpas para... mim? Pelo meu distanciamento? Por ter me perdido de quem eu era? Mas foi o que foi. Só que você não deve se distanciar das suas raízes, ainda que elas lhe doam, Fernanda. Não mais. Este teto aqui lhe abençoa e, sua família, você não conseguirá consertá-la. Não há conserto. Mas há como carnavalizá-la um tiquinho. Cê conseguiu algumas vezes. Ainda que o retrogosto exista, e existirá, teremos sorvete. Enfim.
Agora não sei para onde irei. Mas canto mentalmente para que Deus me leve depressa para o meu caminho. E que eu seja feliz como a Matilda no final do filme, com essa trilha sonora tão... tão... poxa, otimista.
Obrigada. Nem sei a quem agradeço ou ao quê. Mas obrigada.
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