Um conto
2017
Nunca fui à avenida paulista
Nunca
subestime um rato. Afirmei isso em uma mesa de bar matonense. Certa vez um rato
interrompeu um filme de infância ao aparecer atrás do rack na sala. Subi no
sofá cor abajur cor de carne, foi o tempo de um AH!, e o rato desapareceu.
Nenhum livro de sci-fi teria me convencido melhor da existência de uma
outra dimensão do que aquele rato. Mas talvez qualquer assunto perca a
seriedade quando dito na presença daquele senhorzinho, que estraga tudo o que
há de melhor no cancioneiro brasileiro, com as melodias prontas de seu teclado.
Da guerra da Síria à polarização política do Brasil — nada parece grave o
suficiente diante daqueles agudos. O som estrangula as conversas feito uma
sucuri. Todos os ossinhos das conversas são quebrados e, em muito pouco tempo,
é possível notar a total decomposição da matéria dos diálogos, que são
substituídos pelo mudo abrir e fechar de bocas das porções de batata frita e
pelo mudo abrir e fechar de bocas dos olhos e dedos atentos aos celulares
espertos. Matão é uma piada. Pronta, como as melodias do senhorzinho.
Também nunca subestime a capacidade de o roçar de
um braço peludo em um ônibus do meio-dia, destino São Paulo-Matão, causar estranhos
pensares, como ratos & outras dimensões. Poucas horas antes de embarcar
naquele ônibus, eu estava em frenesi. Conheço essa palavra por conta daquele
pagode de que gosto tanto. O mais engraçado é que o frenesi foi desencadeado
por eu estar um show de folk, realizado em uma casa de pagode.
Sabe, eu sou do tipo de pessoa que acredita que
ainda vai conhecer todos os seus artistas preferidos. Se aos oito anos, eu
tivesse autorização para ir em shows, com certeza teria usado uma faixa na
cabeça com o nome da banda que eu cultuasse na época. Aos vinte e cinco anos,
me contentei em fazer um cartaz pedindo um abraçaço ao Devendra Banhart.
Devendra era fã de Caetano. Eu era fã de Caetano e fã de Devendra. Devendra
seguramente entenderia o meu cartaz. Não entendeu. Mas tudo bem. Fui até a
saída da casa de shows de pagode, tive sorte e dei um abraçaço nele mesmo
assim. Depois de verificar que Devendra era real, saltitei pela rua na
companhia de minha melhor amiga da época e de alguns desconhecidos. Faço
amizades fácil e, sobretudo, não tenho vergonha. Não tenho vergonha nenhuma de
estimular bonitezas. Porque se existe uma ideia, mão direita, canetinha, papel
e a mais ínfima possibilidade, eu vou fazer um cartaz e vou levantar em um show
de um artista de que gosto muito. Mesmo que eu tenha vinte e cinco anos. Mesmo
que, com a minha idade, minha mãe já tivesse casa própria. Casa própria, para
mim, faz com que eu me lembre do Sílvio Santos e do seu pião. Minha mãe, no seu
tempo, tinha casa própria, mas tinha vergonha. Eu, nesse meu tempo, ainda moro
na casa dela, mas não tenho vergonha.
A marmita. Era um ônibus com ar-condicionado e
janelas fechadas. Mal tive tempo de me posicionar no assento do corredor e o
cheiro de restaurante por quilo contaminou todo o ar que teríamos disponível
para aquelas cinco horas de viagem. Sempre tive repulsa de cheiro de almoço,
era a refeição que menos abria o meu apetite. Quando pequena, o odor do vinagre
da salada de meu pai me embrulhava o estômago. Seu almoço era sempre assim.
Depois de algum tempo, na catequese, passei a associar o vinagre aos romanos,
que o deram de beber ao Jesus Cristinho. Era o início de um círculo vicioso e,
profano, como todos os vícios: almoço me lembrava vinagre, que me embrulhava o
estômago e me lembrava dos romanos, que me lembravam da maldade contra Jesus e
tudo isso culminava na falácia lógica de que o almoço eram os romanos das
refeições. Na adolescência, por sua vez, passei a associar o almoço aos
restaurantes universitários lotados, ao empurra-empurra desses restaurantes e à
palavra marmita que, na minha opinião, é uma das mais feias da língua
portuguesa, embora considere o seu parônimo, marmota, bem engraçado.
Uns dez minutos após a invasão do justo perfume
das barrigas cheias, o assento do passageiro à minha frente foi inclinado ao
máximo, o que me causou claustrofobia. Me movi, então, ao assento da janela.
Toda vez que me instalo no assento da janela, tenho a mania de cantar
mentalmente a música “Esquadros”, da Adriana Calcanhotto. É a forma que
encontrei para esquecer de que me sinto prisioneira em qualquer posição em que
eu não possa sair correndo com destreza. Normalmente, quando pensava nessa
canção e no “Eu ando pelo mundo”, me sentia vinte e cinco por cento Baudelaire,
vinte e cinco por cento Breton, vinte e cinco por cento Cortázar. Ou seja,
setenta e cinco por cento flâneur, só que de dentro dos bondes da
contemporaneidade. Dessa vez, senti apenas o rebote. Ou melhor, finalmente
compreendi o verdadeiro sentido de remoto controle. A voz imaginária da cantora
ricocheteou a impossibilidade de ultrapassar todos os esquadros, telas e
janelas que compunham a minha vida.
Percebi que, por mais que eu soubesse da grandeza
de ser e estar; por mais que tivesse estudado naquelas universidades de renome;
por mais que conhecesse un petit peu de todas as artes, das definições
hegelianas às mais contemporâneas; por mais que conservasse dentro de mim a
beleza das paisagens, das luzes, dos sons e dos movimentos, meu nariz parecia
fadado a tocar o vidro da janela do ônibus. Eu seria aquela que, vendo o mundo,
veria também a fumacinha se formando no vidro pela minha respiração, enquanto
sentiria o infalível cheiro de marmita.
Na primeira parada do ônibus alguém sentou ao meu
lado. Era um homem grande, cujos pelos do braço, como antecipei, roçavam no
meu, por mais que eu me esquivasse. E, como também antecipei, o passageiro da
frente estava com sua poltrona inclinada ao máximo. Não havia escapatória. Era
a aflição na forma de 250 quilômetros ainda não percorridos. Talvez eu
merecesse. Eu não sairia impune ao frenesi da noite anterior. A vida é um
pêndulo e uma puta duma noite precisa, necessariamente, ser equilibrada por uma
merda de viagem de volta. Pensando bem, os símbolos dessa viagem até que não
foram nada incomuns. Marmita, claustrofobia e pelos fazem parte do inconsciente
coletivo do transporte rodoviário, assim como o choro das crianças. Quem sabe a
ausência de um desses símbolos implicasse o translado para a dimensão dos ratos
e dos objetos perdidos. Antes dos ratos, sempre me questionei para onde iam os
objetos perdidos.
Eu estava em posição fetal imaginando o meu
encolhimento progressivo até o nada, ou melhor, até o momento imediatamente
anterior ao ponto de convergência do ser, já que o nada era um conceito que me
inspirava temor. Me fiz fita VHS. Rebobinei, rebobinei, rebobinei, me
transformando na imagem medonha das barras coloridas dos testes de cores,
pronta para a devolução à locadora. Nesse momento do percurso, quando não me
entretinha traçando o retorno das coisas — plantas se tornando sementes, beijos
se tornando faíscas, palavras se tornando sinapses —, observava a velhinha
loira, uma vovó, esparramada nos dois assentos ao lado.
Vou falar com ela. Quando pararmos no posto vou
falar com ela, pedir por favor se posso me sentar com ela. Vou comer um pão de
queijo e um pastel de Belém no posto e, depois, vou falar com ela. Vou poder
respirar aliviada, vai ser lindo! Lindo! Como foi lindo o show do Devendra!
Nine out of ten music stars make my cry, i’m
alive.
Falei. A vovó disse ter percebido o meu incômodo.
Disse que pensou no neto dela, grandão, naquele estado, todo espremido. Eu
poderia sim, é claro, me sentar com ela. Logo que me acomodei, notei que a vovó
não era tão Palmirinha quanto eu julgava de início. E pensei no quanto eu havia
sido preconceituosa ao atribuir, de cara, qualidades como vovó e Palmirinha
para uma mulher idosa. Parei de subestimar a vovó, que naquela altura já era
Elza.
Elza tinha olhos pequeninos e acesos. Usava
roupas simples e sóbrias, que emanavam elegância: a elegância de quem tem mais
com o que se preocupar do que roupas, ora essa! Era firme e altiva, como as
professoras que conheci na universidade. Logo comecei a imaginá-la no longo corredor
dos departamentos e era estranho como ela ficava bem ali. Essa estranheza me
levou às tesouras. Recortei e colei a figura de Elza em universidades ao redor
do mundo, sessões parlamentares, festas da alta sociedade, reuniões da ONU e,
como uma sofisticada planta ornamental, ela se fundia ao ambiente. Elza não era
um vaso da dinastia Ming que, com a sua opulência e singularidade poderia
destoar dependendo do local onde fosse colocado. Ela, suavemente, pertencia. O
pertencimento era orgânico e eu fiquei maravilhada em como aquela senhora
conseguia, sem esforço algum, ser o único substantivo que dispensa toda a
compulsão por adjetivos típica da minha geração.
O ônibus ligou os seus motores. Agora que eu
estava livre, sem aperto, sem pelos, pernas prontas para qualquer corrida
inesperada, poderia finalmente me entregar ao treme-treme e ao ruído branco —
ou seja, poderia dormir, graças ao embalo involuntário e à deliciosa canção de
ninar que vêm inclusas nesse meio de locomoção. Só que eu não coloquei os meus
fones de ouvido desligados. Tampouco Elza se virou para o lado oposto ao meu.
Todos os gestos previamente estabelecidos que indicavam a não conversação foram
negados. Elza e eu decidimos nos conhecer.
Para mim, isso não era problema, eu não tinha
vergonha e conversas com idosos simpáticos sempre foram corriqueiras na minha
vida de Danúbio Azul e Viação Paraty. Para ela, não sei o que foi. Talvez
estivesse cansada de dormir nos dois assentos. Talvez tivesse incorporado o
arquétipo da sábia anciã e precisava, com urgência, transmitir ensinamentos
àquela jovenzinha inexperiente que eu parecia ser. Talvez fosse a inércia,
tendo em vista que já estávamos conversando sobre o meu ritual de comprar
pastéis de Belém no posto, na volta de São Paulo, porque na minha cidade não
tinha. Fosse o que fosse, falta de sono, teorias junguianas ou inércia, Elza me
contou baixinho, em tom de segredo, que era promotora e que estava indo a
Jaboticabal visitar a filha. Também me confidenciou que não gostava do
interior, disse que a sua filha insistia para que fosse morar em Jaboticabal,
por estar prestes a se aposentar, mas que aquilo seria uma tortura. Segundo a
promotora, o único lado bom do interior era a segurança. Em Jaboticabal podia
usar as suas joias à vontade, coisa que em São Paulo era impensada.
Me senti lisonjeada de ser o tipo de pessoa que
transmite confiança para uma promotora, entendi o do tom de segredo com atraso.
Contei que eu tinha acabado de terminar meu mestrado em literatura francesa e
que não sabia ainda o que fazer, tinha medo de ser professora. Ela entendeu o
meu receio, afinal, os jovens de hoje em dia estavam cada vez mais estragados.
Culpa, obviamente, dos treze anos de PT no poder. Eles acabaram com tudo!
Naquele momento, soube da delicadeza do terreno onde me encontrava. Por sorte,
era um terreno que eu conhecia muito bem, pela minha experiência familiar. Por
ela, estava acostumada a analisar com atenção os restos de comida do meu prato
durante o almoço. Por ela, sei que estou apta ao aprofundamento de estudos
budistas. Sorri e mudei de assunto, revelei que a minha opção por Letras foi
apenas pela Literatura, uma escolha de alguém com dezoito anos. Revelei, ainda,
que toda escolha na minha vida até aquele momento havia sido daquela forma.
Escolhi porque vinha de dentro, mas como tudo que vem de dentro, não sabia
exatamente o que fazer com aquilo. Agora eu tinha vinte e cinco anos e
precisava pensar com cuidado.
Elza ficou boquiaberta com as minhas afirmações,
o natural era que eu fosse para França, oras bolas! Ofereci meus lábios e
dentes com meiguice, puxados pela lembrança-ventríloqua de um pensamento que me
ocorre desde os dezesseis anos, quando fizemos uma van para levar minha amiga
ao aeroporto para o seu intercâmbio no Canadá. No aeroporto de Guarulhos, tive
a certeza de que o dia mais feliz da minha vida seria quando eu estivesse
naquele mesmo lugar, com uma passagem de ida a Paris. Quando todos os rios da
minha vida afluíssem para o momento oceânico em que, finalmente, eu precisasse
ir para França: esse seria o dia mais feliz. Eu não seria tão feliz na França
quanto no aeroporto. A autorização era mais importante do que a viagem.
Aleguei à promotoria pública que não era tão
fácil assim. Qualquer coisa que eu quisesse teria que conquistar com o meu
próprio esforço e, infelizmente, o cenário político, econômico e social da
atualidade não estava favorável para que eu passasse todas as fases do joguinho
de cair fora da minha cidade. Tudo obedecia a um conjunto fixo de etapas
estabelecidas, que era: 1. Arranjar um emprego. 2. Um emprego suficientemente
rentável, para sobrar um valor excedente no fim do mês. 3. Juntar dinheiro
suficiente para a viagem, a despeito de todas as roupas bonitas que se
reproduziam feito coelhos em minhas redes sociais. 4. Viajar.
Eu não tinha um emprego, o que obstruía todas as
outras etapas e fazia com que, na minha lista de sonhos, aquele sempre
figurasse naqueles de longuíssimo prazo. Mas ri, comentei com ela que a única
parte boa do desemprego era que eu poderia me dar ao luxo de fazer um
bate-volta em São Paulo, em plena terça-feira, para um show de um artista que
ninguém em Matão conhecia.
São Paulo. Ela me perguntou onde eu costumava me
hospedar em São Paulo. Perdizes, respondi, bairro da minha amiga, que era
advogada formada pela PUC. Elza ignorou totalmente o bairro e a formação de
minha amiga, que mencionei pensando que pudesse estimular alguma conversação, e
me contou, por sua vez, que morava nos Jardins. Repliquei que só conhecia de
nome. Sabia que era bairro chique, mas só conhecia de nome, assim como o caviar
e o Louvre. E, então, tentando me explicar onde ficavam os Jardins, me deu como
referência a Avenida Paulista. Falei que nunca tinha ido lá, mas que achava
muito legal o lance de ela ser aberta aos domingos. As famílias passeando, os
artistas de rua, a galera de bicicleta, adoro quando as pessoas se dão conta da
importância da ocupação dos espaços urbanos.
Nada no meu discurso parecia tirar Elza de si
mesma. Minha perspectiva de forasteira pouco a interessava, a não ser pelo fato
de que ela havia enxergado nisso a possibilidade de se contar por inteira,
tendo a cidade como pano de fundo. São Paulo foi a cidade onde ela cresceu e se
casou com um dono de empresa, que faleceria pouco tempo depois. Foi a cidade
onde ela se formou em Direito, no Largo do São Francisco. É a cidade onde ela
se sente à vontade. São Paulo da sua vida noturna de teatros, bares e restaurantes.
Mesma vida noturna que lhe nega o direito de usar joias. Pensei em Mário de
Andrade. Nunca li Pauliceia Desvairada. Será que a Elza estaria lá? Não sei.
Mas, do livro da sua vida, eu não sairia impune ao capítulo dos netos, que é
onde ela, simbolicamente, me situava. No final das contas, pensar no seu neto
foi o que me fez sentar ao seu lado.
Tinha quatro netos. A mais velha, filha de sua
filha que morava em Jaboticabal, se parecia comigo, de acordo com o seu
julgamento. Tinha um jeitinho acanhado como o meu. Não era muito de sair. Para
ela, a falta de arrojamento de sua neta era fruto da vida no interior. Mas era
esforçada. Primeiro tentou Direito, mas não se encaixou, então estudou bastante
e conseguiu passar em Medicina, em Catanduva.
Os netos de São Paulo receberam de Elza outro tom
de voz. Eram os três que faltavam. Uma moça, formada em Direito: trabalhava em
um dos maiores escritórios de advocacia do Brasil. Um estudante de engenharia
que, naquele feriado prolongado estava em um daqueles jogos universitários, que
eu deveria saber quais eram. Sim, eu sabia. E um estudante de Ensino
Médio, menino de ouro. Segundo a Elza, nunca viu bondade como a dele,
certamente uma alma evoluída, queria ser psiquiatra para ajudar as pessoas.
Focou na neta formada em Direito. Um
espírito-livre. Segundo Elza, veio com a ideia de tirar um ano sabático junto
das amigas, mas a mãe não deixou, porque seria uma burrice perder um emprego
como o dela. Chegaram a um consenso, o ano sabático se tornou um mês de férias
com as meninas na Índia. Voltou sabida. Elza, então, me garantiu: viajar é a
única coisa que você compra que te deixa mais rico! Recebeu uma ligação, era do
seu celular pessoal. Atendeu.
Desligou. Era o seu genro querendo saber que
horas chegaria em Jaboticabal. Nesse instante, como estávamos próximas do
momento de despedida, a promotoria fez a sua defesa final:
— Sabe, Fernanda, pelo meu emprego, eu acabei
ficando com a mania de ler as pessoas. Eu sei que você não é uma pessoa viajada
porque quando perguntei se conhecia a Avenida Paulista, você me respondeu que
não. Eu junto as informações, sabe? Quando você foi me dizendo que tinha
mestrado, ainda mais em literatura francesa, não entendi o porquê do seu
receio. Vá logo para a França, menina! É o natural. Mas um namorado poderia
atrapalhar a sua carreira. Você tem namorado? Espero que não. Quer um conselho
que eu daria para a minha neta? Vá para a Europa, Fernanda! Vá para França!
Conheça lugares, conheça o mundo! É o que eu falaria para você, se você fosse
minha neta e é o que eu estou lhe falando. Eu olho para você e penso nos meus
netos. Igual à minha neta de São Paulo, ela não quer saber de namorado. Está
certíssima! Em um final de semana ela pega o carro e vai para a casa de praia
de uma amiga. No outro, combina com os amigos de irem para outro lugar. Está
sempre conhecendo locais diferentes. Admiro muito a minha neta, sei que no
interior vocês não têm muito esses costumes. Sei pela minha neta de
Jaboticabal, falta know-how, entende? Ou melhor, savoir-faire, já
que você fala francês. Enfim, tente fazer isso, Fernanda.
Down, down, down.
Os argumentos na boca de uma idosa podem ir muito
além de um discurso a respeito dos malefícios do sereno. Eu sabia que, para
ela, o meu destino já estava traçado: enterrada. Enterrada, talvez com a mão
para fora, feito uma morta-viva ensaiando uma fuga, mas que de fato seria
apenas uma ilha ao contrário — vestígios de mar cravados no solo infértil da
cidade para onde regressava. Decerto me casaria. Decerto com alguém medíocre.
Decerto compraria um terreno com parcelas a perder de vista. Decerto em um bairro
sequer suburbano, já que a cidade em si era o próprio subúrbio.
De terreno delicado à areia movediça. Me afundei
vergonhosamente no esforço para me tornar adequada aos olhos de Elza. Nosso
diálogo se tornou um cabo de guerra de uma pessoa só. Replicava com a
desenvoltura de quem nunca foi à Avenida Paulista, mas que sabia exatamente
tudo o que acontecia lá. Mostrei eloquência como nos eventos da Pós-Graduação.
Quando me contou as suas histórias sobre Paris, mencionei Baudelaire, Breton e
Cortázar. Sempre fui pedreira das imagens que li: Paris estava edificada dentro
de mim. Fui eu, não Horácio, quem percorreu a rue de Seine até o arco que dá
para o Quai de Conti. Queria que ela me visse como eu era.
Continuei a conversa até o fim do percurso.
Gentil. Falsa. Dela, não tenho mais nada o que comentar. O interessante foi ter
percebido, quase chegando em meu destino, mais um retorno: o de uma cadeia
alimentar que findava na abertura da marmita. Nessa cadeia alimentar
rebobinada, Elza não mais me engolia com a sua superioridade. Eu, inteirinha,
como estava antes desse encontro, também não mais engolia as coisas ao redor
com a minha. Enxerguei na marmita o que esperava que ela enxergasse em mim. Não
éramos chinfrins. Tínhamos importância. Tínhamos!
Matão. Alguns dias depois do meu bate e volta, lá
estava eu no bar com os meus amigos. Mais uma vez berrávamos para nos entender,
cada um com um boletim atualizado dos fatos ocorridos durante a semana. No meu
trabalho isso, no meu trabalho aquilo. Finalmente terminei de assistir Breaking
Bad. Bati o carro no pilar do meu prédio. Pequenas vitórias e pequenas
derrotas. Ainda não tinha me pronunciado sobre a viagem, sobre o show, sobre
como foi ter conhecido o Devendra Banhart. Eles não sabiam que eu tinha
saltitado no meio da rua e não sabiam da marmita, dos pelos, tampouco da
senhora-cidadã que eu tinha encontrado no percurso de volta. Enquanto o
bate-papo prosseguia desorientado, comprimido de todos os lados pelas ondas
sonoras de “Chão de giz”, meus pensamentos também penavam para se nortear.
Pensei no trajeto que fiz da rodoviária matonense até à minha casa quando
cheguei. Passei pela rua onde, há pouco tempo, o vento havia me abraçado com
pétalas de dente-de-leão. A mesma rua em que, certa vez, calçando chinelos,
quase tropecei em um rato amassado na sarjeta, fino que nem folha de papel. Um
pobre que não conseguiu chegar até a outra dimensão a tempo.
Olhando os
meus amigos, pensei nos nossos quatro anos viajando para a cidade vizinha,
dispostos a conquistar aquele pedaço de papel que atestava o nosso conhecimento
em algo, que nos permitia fazer algo, mesmo que esse algo não fosse lá muito
rentável. Pensei nas conversas que tínhamos às onze da noite, voltando para
Matão. O escuro do ônibus 1520, as músicas sertanejas na Nativa FM. A ideia
mirabolante de que, se algum de nós ganhasse na loteria, faríamos réplicas dos
estabelecimentos mais famosos dos seriados aos quais assistíamos, no terreno
enorme e mal utilizado da marginal do rio São Lourenço: Central Perk, Maclaren’s
Pub, Los Pollos Hermanos. Ia ser o máximo. Não nos lembrávamos de
direitos autorais, a nossa cidade se tornaria um local que atrairia turistas do
mundo inteiro. Até formulávamos o que diriam as manchetes de jornais sobre
aqui.
FOTOGRAFIAS CORTADAS, EM FOTOS DE JORNAIS,
AMIÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚDE!
Depois pensei na Avenida Paulista. No relato de
Thiago da primeira vez que a viu, ainda criança, deitado no banco do carro, os
edifícios iluminados emoldurando um céu de estrelas borradas. Pensei que também
tinha esse costume, de deitar no banco do carro, olhando os postes de luz no
final de tarde, quando meu pai buscava minha mãe no trabalho. Às vezes me
surpreendia com uma bola de basquete entre os fios de elétricos. A cidade
naquela época parecia enorme.
NEM VOU LHE BEIJAR, GASTANDO ASSIM O MEU
BAAAAATOOOOOOOOM!
Pensei na Paulista aos domingos: as famílias, os
artistas de rua, as bicicletas, a cidade ocupada. Pensei em uma reportagem que
assisti, contando a respeito dos biólogos que catalogavam as espécies de
plantas que cresciam nas frestas do concreto. Tinha de tudo, até amoreira.
NO MAIS, ESTOU INDO EMBOOOORA. NO MAIS ESTOU INDO
EMBOOOORA!
Olhei para o senhorzinho do teclado com respeito.
Fixei no meu prato, analisando a composição dos restos de comida. Grãozinhos de
arroz aqui e acolá, fragmentos de ervas, ruínas do que dia foi um frango que
fazia cocoricó, praticamente um Pollock alimentício. Pensei em Elza, pensei em
mim. Dentes cerrados. Pensei que o melhor era permanecer quieta, não contar a
história da viagem de volta a ninguém. Pensei que o melhor era esquecer tudo
aquilo. E até que esqueci. Mas não completamente.
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