tomemos a nossa dose de cicuta com tranquilidade
Estou num sistema.
Não pretendo sair dele agora-agorinha. Não já. Talvez em breve, mas preciso me preparar. Não sei se sobreviveria muito tempo nos bosques.
Ok, estou num sistema.
Ontem, eu fiz alguns vídeos pra postar no Instagram, porque gosto de me comunicar, tenho tempo, não estou fazendo nada e, acho que isso acaba contribuindo para o meu objetivo final: viver, um dia, de escrita. Um objetivo que, hoje em dia, perpassa a imagem pública e a necessidade de ter redes sociais.
E, ontem, nos tais vídeos que fiz, usei filtros. Eu gosto dos filtros. Não os que mexem no meu rosto, mas os que dão, sim, uma uniformizada na minha cútis. Os que deixam o arredor mais bonito e colorido. Não estou querendo enganar ninguém. Insconscientemente, isso com certeza deve agravar minha visão sobre mim mesma, mas até agora, está tudo bem. Acho que esse meu uso consciente dos filtros não me faz pior do que ninguém, nem menos militante do meu posicionamento contra as pressões estéticas vividas pelas mulheres.
Mas sabe o que é, realmente, ruim?
A percepção, resignada, de que isso nunca vai parar. Estamos lutando, como disse Maria da Conceição Tavares, para não enlouquecer. Para não contribuir com nossa gota de fel ao veneno alheio.
Porque enquanto esse sistema existir, ele nos quererá tristes. Nos quererá descontentes com o que vemos no espelho.
Com isso, me lembro de um vídeo maravilhoso da Vanessa Rozan, que sempre tem feito um movimento importantíssimo em falar de beleza com coerência, enquanto conscientiza, de forma leve e bem-humorada, as mulheres, com informações fidedignas sobre as amarras às quais estamos presas. Nesse vídeo, que não me lembro especificamente qual é, mas acredito ser de seu Instagram pessoal, ela fala em como o mercado, diante de novos cenários e consumos, cria novas formas estéticas impossíveis de serem alcançadas. Com isso, lá vem ela, nossa nova protagonista-objeto-de-estudo, que, em breve, (se é que já não é), se tornará outra, e outra, e outra, e outra, sempre e sempre nessa roda-viva, para sempre e sempre estarmos aquém: a suuuuuuuuuuuuper aesthetic clean girl.
Quem é a CLEAAAAAAAAN GIRRRRRRRLLLLLL?
É a moça com maquiagem supernaturalzinha. "Ai, nasci assim, só ressalto o que tenho de melhor!". E o que ela tem de melhor? Primeiramente, uma genética padrão. Tudo começa lá nos genes perfeitos. E, se ela não os tiver, dinheiro para que os cirurgiões plásticos e harmonizadores faciais consertem tudo o que Deusinho não deu e que não está ornando com a moda do momento. Ok. Aí o que mais ela tem? Procedimentos estéticos ultramodernos, máquinas e mais máquinas do que há de mais atual no mundo da beleza. Tá e que mais? Os melhores dermocosméticos, os mais caros, das melhores marcas, os com mais eficácia científica, enfim. Em suma, o que ela tem? Muito dinheiro. Muito, muito dinheiro.
Vanessa Rozan explicou que, com as maquiagens cada vez melhores e mais acessíveis, agora há esse novo método de tortura: a moda agora é ser linda, naturalmente linda. Tão natural quanto a luz do dia, só que não, KKKKKKK.
Daí isso é vendido e disseminado pelas mídias e nós, mulheres comuns, ficamos, ué? Como ser lindamente natural se eu não tenho dinheiro para tudo isso, mas, sim, para uma base? Como ser naturalzinha se eu quero, sim, usar essa base, única coisa de que disponho para esconder minhas manchas de uma adolescência cheia de acne? Como aparecer no Instagram e ser pregadora do "No filter" se, ao fim e ao cabo, eu só quero fazer um story e não precisar gastar um monte de tempo para me maquiar para aparecer e me sentir apresentável?
Me lembrei disso ontem enquanto usava filtro e sabia que estava tudo bem usar filtro. Estava tomando minha dose de cicuta com tranquilidade.
Mas sabe o que me pegou também?
Como tenho sido MULTIPLATAFORMAS, postei um dos meus vídeos lá, onde tudo está acontecendo, é ele, the one & only, TikTok. E por mais que eu esteja achando algumas coisas interessantes aqui e acolá naquele mundo, mundo, vasto mundo. Meu Deus, aquilo lá o templo do consumo, minha gente! É a própria Medina de exposições de figuras e coisas, quantas coisas! É sempre gente mostrando produto. Mostrando o que comprou. Mostrando como a casa é linda. Como é lindíssima de cara lavada, sem filtros, no seu vídeo com qualidade profissa (Iphone última geração), enquanto se maquia usando produtos caríssimos aos quais não temos acesso e ui, ui, ui!
MEU DEUS! ONDE É QUE HÁ GENTE NO MUNDO?
ONDE ISSO VAI PARAR?
Eu demorei para entrar e saber o que era tudo aquilo de que as pessoas falavam e agora que sei, queria me esquecer.
Agora o culto à magreza está voltando. Agora a beleza está cada vez mais inacessível. Estamos vivendo um grandessíssimo retrocesso, Vanessa Rozan pontuou isso também em coluna para Gama Revista.
Sei lá, gente. Eu realmente estou um pouco chocada com o rumo dos acontecimentos. Eu sou uma otimista hegeliana: tese-antítese-síntese e sempre acho que as coisas vão melhorar. Mas aí elas pioram e eu me perco na cadência dessa dança adoentada do mundo.
E é aí que entra a grandiosa, novamente, MC Tavares, numa letra de funk que eu dançaria, se fosse feita por um daqueles experts, que remixam tudo: "Estamos lutando apenas pra não ficar malucos. Para não dizer besteiras demais. Pra não contribuir com a nossa gota de fel para um veneno alheio. Tomemos a nossa dose de cicuta com tranquilidade, meus filhos.".
Realmente, não é uma frase clichê: nos sentirmos bonitas é algo transgressor e revolucionário. Porque tudo está contra nós. Absolutamente TU-DO. Tomemos a nossa dose de cicuta com tranquilidade, irmãs.
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