obrigada, casa, te amo e sempre te amarei, mesmo que eu queira morar em outra

Eu me lembro da música "Minha casa", de Zeca Baleiro, que sempre me emocionou. "Sentado na porta de minha casa, a mesma e única casa, a casa onde eu sempre morei". Mesmo que eu tenha ido pra lá e pra cá, sinto que sempre morei aqui. É louco. De modo que esses versos me contemplam. Eu também sempre morei numa única casa, que se desdobrou em tantas, mas sempre esteve na base de todas. 

E hoje, pedindo para ir embora, como sempre peço, caiu como uma bigorna a frase "mas você nunca agradeceu esta casa, ela não é ruim; ruins foram as pessoas que fizeram dela uma lembrança dolorida em você". Bem, a frase completa não veio assim, veio só "você nunca agradeceu esta casa" mesmo. E eu soube, então, o que deveria fazer. Escrever. E agradecer.

E agora, ouvindo Zeca, penso nos primeiros versos "é mais fácil cultuar os mortos que os vivos". Tomo essa frase como representação da minha ansiedade, removendo, talvez, a palavra "morto" e inserindo, no lugar, o termo "desconhecido". É fácil amar o desconhecido, Fernanda. Você pensa que ele será todo cheio de plumas e paetês. É triste, no entanto, que você não cultue esta casinha onde você mora, para onde, mesmo depois de tantas casas que vieram, você sempre volta, e ela lhe recebe de braços abertos, como mãe que nunca deixa um filho pra trás, mesmo que tenha feito coisa feia. 

Você não fez coisa feia, Fernanda. Mas é feio não amar essa casa. 

Essa casa onde você se lembra de tudo. E você sabe disso. Você se lembra de quando seu sonho era crescer para poder se olhar no espelho. Você só se via na moldura preta-transparente do espelho do banheiro. Você se lembra de quando chamavam "a sala de visitas" de "outra sala", como algo realmente meio intocado, apesar de você e o Vi sempre brincarem nela. 

Você tinha um pouco de medo dos quadros de lá. Não entendia os quadros nas paredes. Eram muito feios. E você tinha medo da porta principal, na qual via uma imagem estranha, e que, contrariando toda lógica da arquitetura, não era a entrada de casa, porque a entrada antes era pela cozinha, porque sempre vocês tinham que ver a sorveteria. A sorveteria. Todos aqueles freezers lotados de sorvetes de todos os tipos: você amava vê-los. Amava tomar os sorvetes. Não os tinha como doce preferido, mas nunca deixou de gostar deles. Você foi filha de sorveteiro, Fernanda. É poético, não é? Pena você não se lembrar disso e preferir focar nas coisas feias sobre tudo o que aconteceu. Você brincava pra lá e pra cá numa sorveteria enorme, num dos lugares mais interessantes da cidade, que hoje não é nada e é uma pena, cê sabe! Enfim, mas a sorveteria continua aí! Ela se tornou casa da sua vó, mas continua aí. Sorveteria-casa-da-vó. E, hoje, guarda todas as suas coisinhas preciosas. Olha que lindo que é isso! Não é pouco, menina, é muito!

Você tem teto. Você não viveu o que a música "Yaya Massemba", de que você tanto gosta, conta. Graças a Deus. Ninguém merecia viver aquilo. "Foi o céu que cobriu nas noites de frio minha solidão". Talvez você se reconheça na mesma solidão, no vento no vazio que sempre lhe ouviu. Mas você sempre teve teto. Sempre. 

E eu espero mesmo que você ganhe as estrelas, como na música do Emicida, sua epígrafe, e eu agora estou me confundindo sobre quem está escrevendo este texto de fato. Minha consciência, eu com meu ego ou a casa, me bendizendo.

Enfim, agora sou eu. Obrigada, casa. Obrigada por tudo. Pelo abrigo. Por me abraçar enquanto vivia tudo o que vivi. Por serem as paredes sustentaram toda a minha vida, presenciaram quase toda a minha existência e que sabem mais de mim do que quase qualquer um. Você, casa, sabe quem eu sou. E você sabe os meus motivos para partir. Não têm nada a ver com você, embora pareça que eu lhe faça pouco caso ao sempre dizer o quanto quero ir embora. Mas talvez eu tenha lhe culpado um pouco sim, confesso. Como gente que vê na materialidade, a tristeza materializada. Mas não quero mais lhe ver assim, porque você não é assim. Você é linda. Você sabe que eu a deixaria ainda mais linda! Mas você não é minha, então, fazer o quê, né? Só meu quarto tem cor por enquanto. Mas você sobreviverá. E sobreviverá. E eu sempre te amarei. Obrigada, obrigada, obrigada. 

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